domingo, 29 de junho de 2008

coruja

-Vá dormir Thaís, que você não é coruja.
Anna disse sorrindo.
-Meu tio João tinha uma coruja empalhada sobre a mesa em sua biblioteca, que me parecia tão infinita quanto os círculos borgeanos. Por mais que eu escrafunchasse não conseguia ver todos os títulos. Bibliotecas sempre me fascinaram, pareciam lugares sagrados e com um cheiro peculiar que me fazia viajar por mundos tão diversos quanto os jogos que criava para excitar a imaginação e visitar lugares que o corpo não alcançava nunca. O tio João instigava minha curiosidade, fazia invejar a sua infinidade de conhecimentos que me fazia encolher e ficar cada vez mais pequenino diante da grandiosidade que o mundo dos livros revelava. A coruja era o máximo para meus olhos de menino esquisito.
- Agora, você tem uma coruja viva. (disse Anna)
Foi assim...
O dia amanheceu como todo dia. Tinha entrevista marcada com uma TV para falar sobre meu papel de pai de 5 filhas, mantendo uma atitude considerada louca, como integrante de uma banda musical, diretor de TV, poeta, violeiro, escritor, etc etc. Boêmio, maluco, etc etc. Mas coruja!?
A coruja da biblioteca tinha um ar distante como todo corpo morto. Lembro da cara da tia Dora morta, tão longe que nada podia alcançar aquelas lonjuras. Mas uma ave tão rapina e comedora de olhos como a coruja imobilizada pelo empalhamento me provocava uma sensação de coragem infinita, podia tocar um corpo que um dia foi quente e feroz na defesa de seus filhos. Via Marco Polo seguia os caminhos do desorientado. Nunca consegui sistematizar meus conhecimentos. Persigo os títulos e nunca consigo alcançar a totalidade de nenhum autor e vivo de fragmentos, como o olho giratório e esquisito da coruja viva que encontrei voando pelos limites das paredes da cozinha de minha casa à meia-noite desse dia normal. Levei um baita susto, mas encostei a porta e fiquei ali parado buscando uma forma de me comunicar com ela. Balbuciei frases, mansamente, carinhosamente, dementemente eu ali conversando com uma coruja viva. Diferente da outra, empalhada, essa metia medo e me fazia sentir ridículo. Além do mais, a maldita parecia entender tudo e me olhava com aquela cara de coruja de olhos girando estranhamente de lado de frente de costas ela olhava por todos os lados e ângulos e eu balbuciando ridiculamente que cabia ela aqui em casa também sempre cabia mais um sempre cabia mais uma boca , onde come seis come dez e etc.
Anna perguntou:
-Será que coruja come ração de cachorro?!
Virei-me lentamente esticando o pescoço e falei pra Thaís minha filha mais velha, balbuciando.
-Tem uma coruja na cozinha.
- Ah! Pai, não viaja...
-É sério, é de verdade, não é empalhada.
- Anna, venha ver.
Anna viu, Anna pirou, Thaís viu, Thaís pirou.
A noite passava e com ela os mistérios da vida que emitem sinais estranhos, provocando nossa compreensão, poetizando a existência e estranhamente nos colocando cara a cara com uma coruja.
Anna e Thaís foram dormir. Fiquei sentado em frente à TV como um boneco sem vida. Ao constatarem a veracidade do fato ficaram em estado de choque também, a coruja pousada sobre a pia da cozinha reinava soberana, ninguém se atrevia a passar pela porta, tampouco deixá-la aberta. Lembrava das lendas criadas em torno das corujas, furam os olhos, são sinais malditos e tal e coisa. Meia-noite e resolvo abrir a porta da cozinha. Ela se assusta, voa como ave louca pelo pequeno espaço, fecho a porta com cuidado e volto à sala.
Acordo de manhã, assustado, no sofá, a tv ligada e fora do ar.

Cuiabá (MT) · 3/7/2006 18:36

Nenhum comentário: