terça-feira, 1 de julho de 2008

obesa

Naquela cidadezinha vivíamos a impressão nítida de que jamais cresceríamos, uma morosidade rastejante parecia eternizar aquela fixidez como uma fotografia panorâmica. Os silêncios da hora pós almoço não incomodava alma alguma. O cemitério jazia mornamente enquanto os mortos tiravam merecido cochilo.

Numa daquelas tardes sem fim, a população aguardava com respeitosa impaciência o enterro de um senhor que era tido como um dos principais fundadores da cidade. O enterro aconteceria impreterivelmente às dezessete horas, visto que o defunto já começava a dar mau cheiro. Zé Coveiro estaria lá, afinal era o único coveiro da cidade, seguindo uma tradição de família. Não é todo dia que morre gente importante. Dia de pompa para o Zé que preparou sua melhor roupa para a circunstância.

Guri dos mais terríveis, lobo em pele de cordeiro, cara de anjo, riso inocente, menino exemplar, minha cabeça rodopiava sem parar pensando no plano infalível que surgiu como um raio brilhante: era o momento em que finalmente me aproximaria de Obesa. Era o único da turma que não conseguira essa façanha e estava incomodado.

17 horas era a hora do seu banho diário. Diziam na cidade, onde o cardápio principal era falar da vida das pessoas, que Obesa somente deixaria de se lavar naquela hora, no dia do seu próprio enterro. Nem no enterro do prefeito eu iria às cinco da tarde, dizia ela, debochada, rebolando seu corpo imenso e voluptuoso. Às cinco em ponto a cidade inteira se espremia na porta da igreja de onde sairia o féretro. Menos Obesa, e eu, é claro.

Deu branco na hora. Esqueci todo o plano que havia elaborado por horas a fio e não conseguia dar um passo na direção do abismoso terreno. Cada minuto perdido era um tempo irrecuperável e, ao mesmo tempo, me encurralava. Bezerro prisioneiro do medo, mugindo abafados gemidos de tristeza e solidão.

Cinco horas, e a tarde se fechava em copas, galhos poderosos abraçavam minha figura miúda diante da gigantesca tarefa. Ela saiu da casa trajando apenas uma calcinha vermelha, minúscula diante do exagero de suas formas. Pegou o caminho da bica e deslizou direto para o seu palco imaginário, a água caía refletindo diamantes sob a luz do sol que ameaçava escurecer o mundo de glória de Obesa. Ali era Rainha, atriz principal, estrela da companhia - grande teatro da vida. Ela tirava a calcinha enquanto caminhava, se exibia e ria provocando o gato, os cães que roçavam suas pernas, galinhas, pardais, rolinhas, ela exagerava nos movimentos de seu corpo obsceno.

Aquele era o momento. Saí de trás da moita com cuidado, quase sem respirar, ela estava de costas para mim, um dos cães rosnou em minha direção. Obesa se virou sem pressa, languidamente, com os olhos caídos de paixão e benevolência. ?Oi franguinho, não precisa ter medo, venha até aqui. Não tem ninguém para nos ver...

Fui chegando mais perto, desconfiado e tímido, as mãos tentando esconder minhas indecências que saltavam do calção sob o olhar guloso de Obesa, minha Deusa. Ela riu, debochada, da minha falta de jeito.Agarrou-me com decisão e me arrastou até a bica que jorrava água sem parar. Dali em diante não vi mais nada. Por vezes, achei que morreria afogado sob seu gigantesco corpo e pela água que caía da bica como uma tormenta sobre meu rosto desesperado. Mal lembro o que senti, mas era desconfortável. Ela gargalhava sem parar, loucamente, cavalgando sobre mim. Gemia estranhamente, soltava grunhidos grotescos molhando-me inteiramente de fluidos gosmentos e mornosos.

Nunca mais quis assistir os banhos lascivos de Obesa, mudei de rumo, eram muitos os quintais em nossa cidade.

Cuiabá (MT) · 25/9/2006 20:33

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